Da sobrevivência à resiliência: superando o estresse pós traumático com apoio adequado
- psicottrauma
- 23 de mai. de 2024
- 5 min de leitura
Atualizado: 31 de out. de 2024
Todos nós ansiamos e precisamos de ter uma sensação de viver em um lugar seguro. Ocorre que, infelizmente, vivemos em uma cultura que também pode ser violenta e instável, em diferentes doses. Podemos ter sido expostos a vários tipos de violências: (sexuais, doméstica, física, patrimonial, moral, psicológica, humilhação social), experiências de combate de guerras, tragédias naturais, negligência parental, abandono emocional, alcoolismo na família, divórcio dos pais (quando realizado de modo violento e conflituoso), problemas de saúde mental parental (depressão), suicídio de um dos pais, morte súbita de entes queridos, vivências de doença em UTIs.
Esses eventos são considerados adversos e, conforme aponta o estudo ACE (Adverse Childhood Experiences) ( Felitti et al., 1998), também aumentam a chance de desenvolver transtorno do estresse pós-traumático (TEPT ). Esse estudo foi iniciado na década de 1990 e realizado pelo Departamento de Medicina Preventiva da Kaiser Permanente® em parceria com o Centro de Controle e Prevenção de Doenças dos Estados Unidos (CDC). Ele apontou uma relação forte entre essas experiências adversas na infância e prejuízo da saúde mental, da socialização, morte precoce de adultos, abuso de substâncias, obesidade, doenças cardíacas, câncer, doenças pulmonares crônicas.
De acordo com a American Psychiatric Association (2013), o estresse pós-traumático é uma resposta natural caracterizada por um conjunto de sinais e sintomas físicos, psicológicos e emocionais que aparecem em decorrência de vivências de violência, seja sendo a vítima, seja testemunhando atos violentos com outra pessoa, e em geral, esses atos, ameaçaram a vida do portador ou à vida de terceiros. Também pode ser em resposta a experiências emocionais muito dolorosas. Identificar a presença de um TEPT nem sempre é fácil. Sintomas de depressão, ansiedade e uso de substâncias podem estar presentes como comorbidades e, como é um tópico difícil, a disposição para falar sobre o assunto geralmente é baixa por parte do portador.
Os sintomas do estresse pós traumático podem ser:
Reexperiência do Trauma: Flashbacks, pesadelos e pensamentos intrusivos.
Evitação: Esforço para evitar lembranças, lugares ou pessoas relacionadas ao trauma.
Hipervigilância: Sensação constante de alerta, irritabilidade e dificuldade para concentrar-se.
Alterações no Humor e Cognição: Sentimentos de culpa, vergonha, medo, ansiedade, raiva, isolamento, dificuldades de memória, pensamento negativo, desconexão emocional, onde existe um afastamento emocional das pessoas de seu entorno,
Fala: podem evitar falar sobre o evento traumático ou mudar rapidamente de assunto se o tópico surgir. Podem também apresentar um relato vívido: quando falam sobre o trauma, podem oferecer detalhes muito específicos e vívidos ou, em alguns casos, parecerem distantes e desconectados do relato. Podem também apresentar repetição de detalhes: algumas pessoas podem repetir detalhes do evento traumático como uma forma de tentar processar ou compreender o que aconteceu.
A Importância do Apoio e Compreensão
Oferecer apoio emocional é crucial para a recuperação, amenizar os sintomas ou lidar com eles. Se você ou alguém que você conhece está lidando com TEPT, considere as seguintes formas de apoio, que são frequentemente conjugadas nos tratamentos para TEPT:
Profissional de Saúde Mental: Busque a orientação de um psicólogo ou psiquiatra especializado em trauma.
Rede de Apoio: Mantenha conexões sociais positivas, amigos e familiares com boa saúde mental (que tenham responsabilidade em cuidar, afetividade, acolhimento, proatividade, sejam bons ouvintes-sem julgamento e críticas) podem ser um suporte valioso.
Atenção plena (mindfulness, em inglês): caracterizada por um estado mental de autorregulação da atenção no aqui e agora, mantida por uma postura de curiosidade, abertura, sem julgamento aos pensamentos, sentimentos,sensações corporais, em uma atitude de aceitação, em um movimento de tomada de consciência dos estados psicológicos.
Farmacologia: os estudos apontam eficácia de alguns fármacos, especialmente inibidores seletivos de recaptação de serotonina (ISRS), inibidores da recaptação de serotonina e noradrenalina (IRSN), prazosin, e quetiapina para amenizar os sintomas.
Terapia: A terapia cognitivo comportamental, terapia de exposição e EMDR (Dessensibilização e Reprocessamento através de Movimentos Oculares) são abordagens eficazes, baseadas em evidências para tratamento de trauma. Especificamente para traumas, eu trabalho com a abordagem EMDR.
Mas, o que é EMDR?
Eye Movement Desensitization and Reprocessing (EMDR) é uma abordagem terapêutica desenvolvida para ajudar as pessoas a processar memórias traumáticas de maneira mais adaptativa. Essa abordagem terapêutica integra movimentos oculares guiados, sons e toques táteis como um dos componentes-chave, facilitando o reprocessamento de memórias traumáticas no cérebro. Esses movimentos oculares, juntamente às tarefas de memória de trabalho, podem aumentar a extinção, por meio de circuitos neurais (por exemplo, desativando a amígdala), encontram evidências na literatura de neurociências (Voogd et al., 2018).
O EMDR existe desde a década de 80 nos EUA, sendo fundado por Shapiro (2020). Chegou ao Brasil em 1997, com uma formação em espanhol ministrada por Graciela Rodríguez (Argentina). Em 2008, houve a Fundação da Associação Brasileira de EMDR durante o Congresso Brasileiro de EMDR. Em 2019, houve a Fundação da Asociación Iberoamericana de PsicoTrauma (AIBAPT). Atualmente, o EMDR é reconhecido pela Organização Mundial de Saúde (OMS), pelo National Registry of Evidence-Based Psychotherapy and Practice (NREPP/USA) e pelo Conselho Federal de Psicologia do Brasil como eficaz no tratamento de estresse pós traumático. Para aplicar EMDR é necessária uma extensa formação.
A Abordagem EMDR é um protocolo de três etapas onde passado, presente e futuro estão integrados. O processo é dividido em oito fases, começando pela história clínica e estabelecimento de um relacionamento terapêutico seguro. Em seguida, a atenção se volta para a identificação das memórias traumáticas (alvo de intervenção), emoções, sensações corporais e crenças negativas (o que a pessoa se diz) associadas a essa memória. O próximo passo é a dessensibilização integrada desses componentes, via estimulação bilateral. É importante ressaltar que durante o processo, a pessoa permanece acordada e consciente, e não é necessário verbalizar tudo. Posteriormente, ocorre a instalação de crenças positivas e mais adaptativas e a dessensibilização das sensações corporais. Partindo para a fase final, ocorre o fechamento e, na sessão seguinte, a reavaliação. Após a ocorrência de toda a dessensibilização e reprocessamento, utilizam-se procedimentos de instalação de recursos comportamentais para situações futuras.
Os objetivos dessa abordagem é neutralizar as memórias perturbadoras e integrá-las afetivamente com outras experiências equivalentes. Dessensibilizar as crenças negativas a respeito de si mesmo, emoções e sensações corporais associadas ao evento traumático e instalar habilidades, verbalizações positivas mais apropriadas para responder aos contextos da vida cotidiana. Durante todo esse processo, a segurança psicológica do cliente é preservada, e as sessões são realizadas em um contexto conexão, conforto e confiança com a terapeuta. Nesse processo, o cliente está no comando. Ele decide quando parar, existe uma sensação de escolha de quando seguir em frente e quando não.
Muitos indivíduos submetidos ao EMDR relataram uma redução significativa nos sintomas do estresse pós-traumático. A terapia não apenas alivia o sofrimento imediato, mas também promove uma visão mais equilibrada do passado, permitindo que a pessoa construa um futuro mais saudável. Uma fala bastante frequente utilizada por essa abordagem é: “O passado fica no passado”. A sensação de “estar aprisionado” ou "viver assombrado” dos eventos traumáticos pode melhorar substancialmente.
Importante ressaltar que a abordagem EMDR apresenta muitas evidências científicas para o tratamento de trauma, produz bons resultados, para a maioria dos casos. O Estresse Pós-Traumático é um desafio real, mas é possível amenizá-lo e, em muitos casos, superá-lo, com o apoio adequado. É possível ter vida após um trauma? Sim, é possível ajudar a pessoa a se reconectar com seus recursos e sua resiliência. Ao aumentar a conscientização sobre o TEPT, podemos contribuir para uma sociedade mais compassiva e solidária. Se você ou alguém que você conhece está enfrentando esse desafio, lembre-se de que há ajuda disponível.
Referências
American Psychiatric Association. (2013). Diagnostic and statistical manual of mental disorders (5th ed.). Washington, DC: Author.
Felitti, V. J., Anda, R. F., Nordenberg, D., Williamson, D. F., Spitz, A. M., Edwards, V., ... & Marks, J. S. (1998). Relationship of childhood abuse and household dysfunction to many of the leading causes of death in adults: the adverse childhood experiences (ACE) study. American Journal of Preventive Medicine, 14(4), 245-258. https://doi.org/10.1016/S0749-3797(98)00017-8.
Shapiro, F. (2020). EMDR: Terapia de dessensibilização e reprocessamento por meio dos movimentos oculares. Porto Alegre: Artmed Editora.
Voogd, L. D. de, Kanen, J. W., Neville, D. A., Roelofs, K., Fernández, G., & Hermans, E. J. (2018). Eye-movement intervention enhances extinction via amygdala deactivation. Journal of Neuroscience, 38(35), 7595–7606. doi: 10.1523/JNEUROSCI.0703-18.2018
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